19 de abr
O engenheiro Guilherme Francis Sortino proporcionou mais uma conversa enriquecedora na SAE BRASIL. Nesse bate-papo, Sortino voltou ao passado para relembrar o nascimento da associação no começo dos anos 90 e de quando foi nomeado como o primeiro gerente-geral da entidade, cargo que ocupou por sete anos.
Além disso, o profissional falou sobre o papel da entidade no desenvolvimento da engenharia nacional nos últimos 30 anos e avaliou o atual momento do grupo, que hoje soma mais de três mil associados.
Guilherme Sortino é Doutor em Engenharia pela POLI-USP, Mestre em Administração de Empresas pela Fundação Getúlio Vargas (FGV/EAESP) e graduado em Engenharia pela FAAP (Faculdade de Engenharia da Fundação Armando Alvares Penteado).
Neste artigo você poderá conferir na íntegra essa conversa. Veja como foi esse bate-papo!
SAE BRASIL: Você foi o primeiro gerente-geral da SAE BRASIL . Conte para nós como surgiu a ideia de trazer a entidade para nosso país.
Comecei minha carreira na Ford. Depois de certo tempo, percebi que para progredir eu precisava continuar estudando. Então, fui fazer um curso de especialização em motores no Instituto Mauá de Tecnologia. Esse curso incluía também motores de avião.
Um dos meus colegas de classe foi contratado por uma companhia aérea e enviado aos EUA para aprimorar seus conhecimentos na área. Lá, se tornou membro da SAE INTERNATIONAL.
A SAE tinha um programa de incentivos para os membros convidarem e apadrinharem novos associados. Esse colega que se tornou membro nos EUA, por sua vez, enviou um convite para “membership” para todos os colegas da classe. Até onde sei, fui o único que aceitou o convite naquela ocasião.
É importante contar que a primeira revista da SAE INTERNATIONAL que chegou às minhas mãos tinha o Sr. Edward T. Mabley na capa, pois era o novo presidente eleito da SAE na ocasião. Chamou muita minha atenção o artigo na revista falando sobre ele, sua carreira, sua família e sobre Mabley estar começando naquele ano como presidente da SAE.
SAE BRASIL: Mas você já conhecia a SAE?
Não. Conhecia só as latas de óleo nos postos de gasolina. A partir daí, comecei a me interessar mais e descobri que o presidente da Regional São Paulo era o Sr. Carlos Alberto Futuro. Logo entrei em contato e fui conhecê-lo pessoalmente. Ele me convidou e passei a ajudar na organização das palestras técnicas da Regional SP e a participar das suas reuniões.
Não demorou muito e fui convidado, como membro ativo da Regional São Paulo, para participar aqui no Brasil de uma reunião com o Sr. Ed Mabley. Na época, ele estava se preparando para se aposentar como presidente mundial da divisão de caminhões da Ford. O Sr. Mabley veio acompanhado do Sr. John Casker. Eu participei da reunião de forma muito modesta, pois era o “caçula” da equipe.
SAE BRASIL: O que representava a Seção Regional naquele momento?
Existiam duas regionais, uma em São Paulo e outra no Rio de Janeiro. Elas basicamente reuniam as pessoas para eventos técnicos. Aqui em São Paulo, uma das primeiras que ajudei a organizar, foi realizada na sede do Sindipeças. Eu trouxe um colega que era diretor da Autolatina, e foi uma excelente palestra. Isso, se não me engano, foi um pouco antes da reunião com o Ed Mabley.
O Ed Mabley já tinha vindo antes aqui para o Brasil. Nessa época ele trouxe o projeto de fabricação do caminhão Cargo quando visitou diversos fornecedores e fez todo esse trabalho pela Ford. Quando voltou, já como presidente da SAE INTERNATIONAL, veio com o objetivo de formar a SAE BRASIL.
Eu não sabia, mas o Carlos Alberto Futuro já tinha trabalhado com o Ed Mabley antes, porque ele era de planejamento, uma área estratégica da Ford. Tinha muita facilidade com tudo isso.
Eu li em uma das revistas da SAE INTERNATIONAL, um folheto onde se explicava em detalhes os prêmios que eram ofertados. Eu imaginei que almejar algum dos prêmios técnicos como engenheiro no Brasil, naquela época, era praticamente nula. Entretanto, havia um que era para o associado que indicasse o maior número de novos associados no ano, e eu pensei: “olha, isso eu posso fazer”.
Como eu era engenheiro de qualidade responsável por cerca de 50 fornecedores da Ford, em cada visita eu falava um pouco sobre a SAE e as associações foram acontecendo. Bom, para encurtar a história, eu ganhei duas vezes o prêmio mundial e não pude ganhar o terceiro, porque eu tinha sido contratado para ser o primeiro gerente-geral da SAE BRASIL.
SAE BRASIL: Como foi o processo para você ser o primeiro gerente-geral da SAE BRASIL?
Só soube depois de ser contratado que eu estava concorrendo com o Carlos Alberto Futuro para ser gerente-geral da SAE Brasil.
O Mabley me convidou para uma conversa sobre a SAE no hotel Transamérica e eu preparei algumas transparências para esse encontro. Lembra que naquela época usávamos retroprojetores? [risos].
Nessa conversa, eu falei para ele: “olha, Ed, se a SAE vier para o Brasil, podemos crescer dessas formas e neste ritmo. Expus a visão do potencial na apresentação. Não sabia, mas depois ele me contou que decidiu me colocar no desafio de ser o primeiro gerente após ver em uma das minhas transparências que eu dizia que se tivéssemos os recursos necessários em x tempo teríamos 2.000 associados.
Ele gostou bastante daquela visão e me contratou mesmo eu não tendo muita experiência em planejamento. Quando fomos iniciar a SAE BRASIL, fui com o Flamínio Leme no cartório para acertar a documentação formal e ele disse para colocar meu nome como fundador. Mas eu disse: “Olha Flamínio, vamos homenagear o Carlos Alberto Futuro, porque durante tantos anos ele foi da Seção São Paulo, com um grupo muito pequeno, carregando as pedras quase sozinho. Eu disse que realmente faria mais sentido o nome do Carlos Alberto Futuro ali. E assim foi.
SAE BRASIL: E o que representou para você ter sido o primeiro gerente-geral?
Foi um desafio muito grande, porque quando começou era só eu no escritório com um telefone. Era uma sala pequena, ainda no Horsa I (Edifício do Conjunto Nacional na Avenida Paulista). Comecei no dia 2 de janeiro de 1992.
Era comum eu ter jornadas de 16 a 18 horas por dia, dependendo da situação.
O primeiro Congresso foi um desafio monstro. A Cindy Gabbana, secretária do John Casker, me ajudava muito por telefone e e-mail. Depois vieram algumas pessoas do escritório dos EUA para ajudar, incluindo a Connie Eren, que era especialista em montar os programas impressos dos congressos e outros eventos da SAE.
A primeira diretoria foi decidida informalmente em um jantar na churrascaria Bassi, na rua 13 de Maio. Nessa ocasião, estavam Luc de Ferran (Ford), Bernd Wiedemann (Volkswagen), Ed Mabley e John Casker (SAE INTERNATIONAL), entre outros daqui do Brasil que concordaram em integrar o grupo diretor pioneiro.
E foi um desafio grande, porque eu era engenheiro e tinha responsabilidades e tarefas bem mais técnicas e, de repente, precisei evoluir para uma função com um perfil muito mais administrativo e com aspectos múltiplos.
O primeiro Congresso em 1992 foi no Centro Empresarial de São Paulo. Os stands, diferente de hoje, eram idênticos em tamanho. O diferencial era no seu interior, que ficava por conta das empresas. E já houve certa quantidade de papers técnicos apresentados. Foi pequeno, mas foi completo. Teve ótimas palestras, papers, coquetéis e jantar. O público, que eu me lembro, foi em torno de 1.000 participantes.
O Dr. Ferdinand Panik, (Mercedes-Benz) ajudou muito nesse período inicial. Muitos anos depois (em 2014 ou 2015), estive na Alemanha e tive o prazer de visitá-lo, onde fui muito bem recebido por ele, sua esposa Mônica Saraiva Panik e seus filhos gêmeos.
O Dr. Panik foi uma das forças mais incríveis que tivemos, assim como o Luc de Ferran, Bernd Wiedemann, Carlos Buechler. Todos eles e muitos outros foram extremamente dedicados para com a causa da SAE BRASIL e tinham mais do que simpatia, realmente deram do seu tempo, paciência e nos orientaram em muitas coisas.
SAE BRASIL: E a partir daí o crescimento fluiu?
Sim. O sucesso do primeiro Congresso ajudou o desenvolvimento do segundo, que já foi maior. O volume de coisas expandiu e já não cabíamos mais na salinha. O Luc de Ferran deu a ideia de realizarmos eventos técnicos adicionais em parceria com o Sindipeças, que permitiu a aquisição da sede própria, um pouco maior, agora no Horsa II.
Foi realmente um período de trabalho muito intenso. Além de todos os que eu já citei, tenho que deixar registrada minha gratidão a todos os colaboradores e voluntários desse período de início.
Vai ser bem difícil lembrar de todos, mas, em especial, ao Edgar Bertolacine e Vivaldo Russo da Eaton; o professor Roberto Salvagni da POLI USP, que nos ajudou muito na parte técnica dos papers e ao César Saldiva de Aguiar, que foi presidente da AEA, que no começo havia uma certa concorrência entre as instituições. Entretanto, o Aguiar foi muito hábil e nós tivemos condição de entender que a SAE BRASIL nasceu para ser uma entidade das pessoas e a AEA sempre focou no representar as empresas.
Também quero agradecer ao staff que foi se formando. A Maria Lice Salmeron, no cargo de secretária, e o sr. Zulmiro Santos Silva, no financeiro, foram colunas estruturais da SAE BRASIL. Ambos tocavam o dia a dia de forma espetacular. Me davam condição e segurança de trabalhar sabendo que o que era combinado estava sendo realizado e que qualquer solicitação dos nossos diretores, eu teria as informações necessárias.
A equipe de um executivo numa condição dessas é a alma do negócio. Éramos um time pequeno, mas muito unido. Sabíamos fazer o melhor uso dos nossos recursos e possibilidades. E essa energia, esse empenho da equipe, permeou os 7 anos em que eu me dediquei a esse cargo.
SAE BRASIL: Depois do grande desafio de iniciar as atividades da SAE Brasil logo com um Congresso no primeiro ano, o que veio depois?
Conseguimos alcançar o número de 2.000 associados. Isso foi um grande marco, pois era a concretização do que o Mabley viu lá naquela transparência no início da nossa trajetória.
Depois, ele nos deu a missão de trazer o projeto Baja para os estudantes de engenharia aqui para o Brasil e me colocou em contato com o professor Tom Gillespie, autor de um dos livros mais vendidos da SAE: Fundamental of Vehicle Dynamics.
O Gillespie me apresentou o Brad Morrow, que tinha acabado de terminar o ciclo como líder do time Baja da Universidade de Michigan e já tinha sido contratado como engenheiro pela Chrysler.
Já tínhamos levado duas vezes alguns professores do Brasil para os EUA para conhecer o projeto, visitar as universidades e os times participantes de lá, mas as coisas progrediram lentamente por aqui.
Então, o Mabley teve a ideia de mandar o Brad para cá, para acompanhar os grupos de Baja que estavam surgindo aqui. Ele aceitou o desafio. Nós o buscamos no aeroporto e ele praticamente só falava “bom dia” e “obrigado” em português, e o deixamos com o primeiro grupo.
Ele passou meses com esses grupos (cerca de dez), morando em repúblicas ou até mesmo na casa de alguns participantes, ensinando-os a realmente colocarem a “mão na massa”. Foi notável o sucesso que ele teve nessa tarefa. Isso foi cerca de um ano antes da nossa primeira competição no Brasil.
A Mirtes Bogéa, do nosso staff, foi quem nos ajudou muito nesse processo de coordenar as estadias e a logística de levar o Brad de sul a norte, leste a oeste do Brasil indo ao encontro dos grupos de estudantes.
Os grupos tinham as normas da competição. Fizemos o esforço de trazer os motores (todos iguais) que eram importados, e foi uma loucura. Daria uma hora de conversa só pra contar o enrosco que foi para tirarmos esses motores da alfândega [risos]. Com a ajuda do Brad Morrow, esses alunos começaram a pegar o espírito e o gosto pela competição.
No dia da competição (pista de bicicross do Parque do Ibirapuera), apareceram 8 carros. Brad fez parte da equipe técnica, e um gerente da SAE INTERNATIONAL, dedicado exclusivamente para o Baja, veio também para atuar como juiz.
Foi muito bonito e gratificante ver a alegria e o entusiasmo que despertou nos estudantes. Foi um dia inesquecível! A entrega da premiação ocorreu em um buffet e foi divertido ver todos sujos de barro, fazendo aquela festa.
Essa foi uma semente abençoada de um dos projetos, que eu acredito que teve o maior impacto dentro da engenharia brasileira. Eu não sei como está hoje, mas vi nos EUA os departamentos de RH das empresas extremamente preocupados em captar os melhores estudantes nas competições. Muitos alunos já levavam seus currículos, pois sabiam dessa oportunidade e possibilidade de já sair contratado dali.
SAE BRASIL: O que mudou para a nossa engenharia com a chegada da SAE aqui no Brasil?
GS: Olha, tivemos a oportunidade de facilitar o acesso aos trabalhos técnicos, e no começo era algo tão novo que era comum eu receber ligação de jornalistas querendo fazer pesquisa. Eles faziam isso nos computadores da nossa sede e depois era comum eles falarem da SAE na mídia. As gestões seguintes aproveitaram muito melhor, criando prêmios para essa categoria e fizeram uma aproximação bacana com os jornalistas.
E para a indústria foi importantíssimo. Imagina você ter que desenvolver um novo componente e pela SAE você poderia ver todas as inovações que foram apresentadas em Congressos a respeito disso. Tudo o que você precisava pesquisar estava ali, bem na sua frente.
Os gerentes de engenharia compravam esses papers e faziam suas equipes estudarem para não inventar a roda de novo. Se alguém já tinha inventado, espera aí, vamos fazer então de uma forma mais aprimorada! [risos].
Naquela época estávamos com o astral bem baixo, pois o presidente Fernando Collor tinha nos chamado de fabricantes de carroças. Imagina você ser engenheiro de carroças. Então, tivemos a oportunidade de erguer o patamar da engenharia brasileira.
A SAE trouxe uma contribuição efetiva para o avanço dos nossos engenheiros, com informações e renovações sobre a mobilidade, nos permitindo evoluir mais sólida e rapidamente. E isso, de maneira muito concreta, foi vital nessa transformação da nossa engenharia, que hoje ocupa um lugar de respeito entre as engenharias de todo mundo.
SAE BRASIL: Bom, você já falou o que significou lá no passado ter sido o primeiro gerente-geral da SAE BRASIL. E hoje, o que significa isso para você?
Uma alegria tremenda de ter me aprimorado como profissional, gestor, engenheiro de uma coisa mais complexa e ter deixado um legado na SAE BRASIL. Quando passei o bastão para o Mário Guitti, estávamos a caminho dos 3.000 associados. Já tínhamos o Congresso mais do que consolidado, sede própria, uma equipe organizada e times diversos de voluntários dedicados, comprometidos e funcionando bem. Então, cabia ao novo gestor trazer sua contribuição e dar sequência a tudo isso.
Durante aqueles anos pioneiros, tive a honra e o privilégio de acompanhar estudantes e profissionais que se envolveram e aprimoraram de diversas formas, como escrevendo papers, participando das pesquisas, palestras e comissões técnicas. Todo esse enorme grupo dedicado e comprometido, com múltiplas funções, cresceu e progrediu
Deixei de ser engenheiro de detalhes para ser um engenheiro de influência ampliada, e tive a alegria e a oportunidade de conviver com inúmeros engenheiros extraordinários, como o sr. Moacir Ricci, que era da GM, e o Sérgio Savane, na época na Mercedes, hoje parte do staff da SAE BRASIL.
Na época, meus filhos eram ainda crianças. Mas acredito que hoje eles compreendam melhor a minha ausência naquele período, pois sabem que foi por uma grande e meritória causa.
Agradeço a Deus por ter me dado essa oportunidade de servir aos engenheiros e à engenharia no Brasil. É muito bonito ver o quanto a SAE BRASIL evoluiu e o quanto vai poder continuar contribuindo com as próximas gerações. É o que desejo e tenho fé e esperança que, de fato, essa trajetória de evolução e progresso continue sempre.