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Observatório da Mobilidade SAE BRASIL no Jalapão: Uma estrada que precisa de tração

14 de dez

texto por Ariane Marques | fotos por Tobias Hückelhofen

revisão: Camilo Adas, Leo Feres

O Jalapão está localizado no estado mais novo do Brasil e tem se tornado um dos destinos turísticos mais desejados. Em Setembro de 2021, visitamos alguns dos belíssimos atrativos naturais, como os rios e cachoeiras, os fervedouros e as dunas. Também visitamos comunidades quilombolas, em especial o quilombo Mumbuca. 

Sentimos na pele a dificuldade de acesso devido às condições de algumas das piores estradas brasileiras, a TO-255 e a TO-247. Também buscamos entender a dinâmica de mobilidade dos moradores locais, que não possuem veículos adequados para a estrada, tampouco acesso a outros serviços de mobilidade.

Tocantins: uma breve introdução do estado mais novo do Brasil

Emancipado do estado de Goiás em 1988, o Tocantins é o estado mais jovem do Brasil. Sua capital, Palmas, evidencia os sinais da sua juventude: uma cidade planejada, com ruas e avenidas amplas, organizadas por quadras e blocos, além de ter muitos terrenos vazios, obras e espaço para se desenvolver. 

Com um território de quase 278 mil km2, sua população estimada pelo IBGE em 2021 é de apenas 1.607.363, sendo um dos índices de densidade demográfica mais baixos do país. Apenas dois de seus municípios possuem população acima de 100 mil habitantes: Palmas, a capital e maior cidade com 313 mil habitantes, e Araguaína, com cerca de 228 mil habitantes. 

O Tocantins se localiza bem no centro do Brasil, o que favorece o acesso e a distribuição de mercadorias para centros consumidores. O estado é cortado pelas BR-153 e BR-226, que juntas formam o eixo viário da Rodovia Belém-Brasília. A estrutura logística do estado é complementada ainda por diferentes modais, com ferrovias e hidrovias.

O território do Tocantins abriga ainda pontos essenciais para a preservação do Cerrado, um dos biomas mais ameaçados do Brasil e o principal responsável por fornecer águas para as três maiores bacias hidrográficas da América do Sul. Cerca de 15% do território do estado são áreas protegidas, chamadas de Unidades de Conservação. 

Detalhe da placa na Cachoeira do Formiga no Jalapão: Paz na alma, amor no coração, gratidão pela vida, fé na caminhada
Cachoeira do Formiga no Jalapão.
Coruja buraqueira em cima de um toco de madeira, com céu azul ao fundo
Coruja buraqueira no Jalapão.

Jalapão: o deserto das águas brasileiro

O Jalapão guarda jóias raras naturais, que vêm se tornando desejo de viagem para muitos Brasileiros. O Parque Estadual do Jalapão recebe cerca de 50 mil turistas anualmente, oferecendo uma experiência singular de ecoturismo, lá é possível encontrar aventuras, como rafting e trekking, além das belezas únicas dos fervedouros, fenômeno que ocorre quase que exclusivamente por lá.

Visão aérea de um fervedouro no Jalapão, imagem de drone.
Fervedouro Mumbuca – Jalapão.
Dunas do Jalapão
Dunas do Jalapão.
Cachoeira da Velha no Jalapão
Cachoeira da Velha no Jalapão.

A região do Jalapão é formada por 15 municípios, sendo Ponte Alta do Tocantins (8.192 habitantes), Mateiros (2.773 habitantes) e São Félix do Tocantins (1.610 habitantes) os mais visitados turisticamente. Além da região urbana desses pequenos municípios, existem diversas comunidades rurais e quilombolas que têm o turismo e a produção de alimentos como a maior fonte de renda. 

Fotos aéreas de Mateiros – TO

Acredita-se que as comunidades quilombolas se instalaram por ali como resultado de um processo migratório do final do século XIX. Os primeiros moradores, provavelmente vieram da Bahia, buscando terra, melhores condições de sobrevivência e, provavelmente, fugiam da escravidão. Existem mais de 11 comunidades quilombolas na região e tivemos o privilégio de conhecer algumas como: Mumbuca, Prata e Rio Novo. Após anos de luta para o reconhecimento do território, os quilombolas do Jalapão sofrem constante ameaças com projetos de concessão e privatização do Parque Estadual do Jalapão.

Foto da área central da mumbuca, com a igreja e galpão principal. Ao fundo cadeias de montanha e o sol grande e amarelo
Foto aérea da comunidade quilombola Mumbuca.

O desafio de se mover no Jalapão

Um viajante desavisado pode olhar os 160 km que separam Palmas do Jalapão e ficar tentado de enfrentar aquela estrada. Mas mal sabe ele os desafios que irá enfrentar! O Google Maps já dá um indicativo, serão 5h para chegar até Mateiros e as rotas alternativas têm tempos ainda maiores. 

Só que a realidade é muito pior, levamos quase 10 horas para chegar até a comunidade quilombola Mumbuca. Na época de seca o maior desafio são as costelas de vaca, tecnicamente definidas por corrugações, que geram uma vibração intensa no veículo. Outro grande desafio são os atoleiros que se formam por mecanismos diferentes na época de seca (atoleiros de areia) e de chuva (atoleiro de lama). 

Duas ruas principais de terra levam, com casas ao redor.
Foto área do quilombo Mumbuca.
Foto aérea de estrada de terra Mateiros - TO. Drone.
Estrada no Jalapão.

Essa viagem é recomendada apenas para veículos com tração 4×4 e, ainda assim, deve-se tomar muito cuidado e ter a manutenção do veículo em dia. A maioria dos veículos que circulam nessas estradas são de agências e guias de turismo, que movimentam cerca de 50.000 pessoas por ano. 

Por do sol em uma ponte no Jalapão, duas caminhonetes estão paradas para admirar.
Turistas no Jalapão.

O único transporte “de massa” é realizado por uma empresa privada, apenas um ônibus faz a rota duas vezes por semana. No entanto, na época de seca, quando a condição da estrada está muito ruim, um grande trecho é feito de caminhonete, sendo possível transportar ainda menos pessoas. Nós tentamos utilizar o ônibus, mas o motorista combinou e nunca apareceu.

Quando precisam, os moradores ficam à procura de caronas e se articulam através de grupos de whatsapp. Eles utilizam essa estrada quase todas as semanas, seja para estudar, visitar a família, comprar itens importantes para seus pequenos estabelecimentos, como restaurantes, mercados e lojas.

Padre chegando de caminhonete 4x4 em uma comunidade no Jalapão.
Padre e caronas visitando uma comunidade no Jalapão em um veículo 4×4.
Foto de uma antiga caminhonete carregada com um freeser
Veículo de transporte antigo.
Crianças de carona na caçamba de uma caminhonete.
Homem com criança no colo, conversa com uma mulher e um senhor de chapéu.
Um dos poucos veículos pequenos de moradores da Mumbuca.

Até mesmo para atender a saúde em Mateiros é extremamente necessário um veículo 4×4. Com apenas uma unidade básica de saúde (UBS) no município, a frota da cidade é formada por 02 caminhonetes 4×4, que atendem as necessidades de saúde da cidade e das comunidades quilombolas.

A maior parte dos moradores locais não conseguem adquirir veículos que suportam as condições desse tipo de estrada, uma vez que o carro 4×4 zero mais barato no Brasil hoje custa acima de R$ 100 mil. Até mesmo financiar um veículo usado não é tarefa fácil, visto que para ceder o crédito é necessário pagar pelo menos 30% do valor como entrada, além do pagamento de juros altos.

Com um salário médio de R $1.650/mês em Mateiros (dados IBGE), fica difícil imaginar um cidadão comum adquirindo o carro que ele precisa. Dessa forma, muitos moradores acabam optando pelo uso da motocicleta, que tem seu risco e perigo agravados pelas condições das estradas locais.

Mãe e duas crianças em uma moto no Jalapão.
Uso da motocicleta na Mumbuca.
Garoto andando em uma bicicleta vermelha no Jalapão.
Uso de bicicleta em estrada de areia.
Dois homens andam de cavalo em uma comunidade no Jalapão. A rua é de terra e dois cachorros se aproximam.
Uso de cavalo nas comunidades quilombola.

Estrada do Jalapão: entre desejo e promessa

Durante nossas conversas com a comunidade, um pedido ressoava: “queremos uma estrada de qualidade!

A falta de uma estrada adequada ali é, em alguns casos, uma questão de vida ou morte. Quando um morador precisa de atendimento, seja de emergência ou alguma especialidade médica, o centro de atendimento que eles precisam ir é em Porto Nacional. A rota mais curta entre Mateiros e Porto Nacional é 295 km, através da rodovia TO-255, porém devido às condições precárias dessa estrada, é habitual que o transporte seja feito pela rota BA-458 e TO-477, dando a volta pela Bahia e retornando até Dianópolis no Tocantins.

A estrada por ali é assunto constante nas promessas eleitorais, e atualmente a TO-247 começou a receber os primeiros metros de ‘capa asfáltica’ no trecho de 50 km entre Lagoa do Tocantins e São Félix.

Uma só estrada para melhorar a mobilidade no Jalapão

Particularmente, gostaríamos de escrever aqui que existem diversas soluções que poderiam contribuir para a vida das pessoas no Jalapão, mas a verdade é uma só… eles precisam de uma estrada de qualidade. O acesso à saúde e qualidade de vida é um direito de todos e hoje essas pessoas têm dificuldade de obter esse direito.

Além da estrada, a tecnologia presente na indústria automotiva também poderia viabilizar um acesso considerável a esses direitos. Veículos 4×4 robustos já acessam as comunidades diariamente, mas são inacessíveis para quem mora lá. 

O que está bloqueando muitas dessas iniciativas é o valor econômico e a lucratividade de um empreendimento desses. Porém, como sociedade, precisamos nos perguntar onde são os limites dessas decisões e quais os nosso compromisso com o acesso de todos os brasileiros a serviços básicos de mobilidade, que garantam saúde e desenvolvimento.

Check-list Observatório da Mobilidade: Mateiros – TO

Indicadores sócio-econômicos e de mobilidade

Observações in loco

Observatório da Mobilidade SAE BRASIL no Jalapão

Através de um olhar diferenciado para regiões como Mateiros e o Jalapão, podemos debater propostas e pensar em soluções para esses desafios. O Observatório da Mobilidade Humana é uma das iniciativas da SAE Brasil para conectar especialistas com essas realidades.

O olhar da mentoria de Mobilidade Humana

A engenharia local e o brasileiro no centro do desenvolvimento

por Léo Feres & Silvia Simon

A mobilidade e a logística em cidades pequenas, como verificado pelo Observatório da Mobilidade Humana da SAE BRASIL, frequentemente ocorre em vias precárias,  percorrendo-se longas distâncias. Como resultado, temos uma menor probabilidade de encontrar sinergia entre os fretes, trechos e viagens. É de praxe verificarmos a dificuldade para que remédios, alimentos e equipamentos cheguem a pontos centrais de distribuição para, dali, servir municípios, distritos e roças a até 50 km de distância, onde vive, às vezes, uma só família no ponto mais distante.

Portanto, para suportar os desafios de se chegar a um ponto de distribuição e dali, a consumidores finais, há que se ter veículos com robustez e constância, veículos que possam ser confiáveis em tempo seco e debaixo de chuva, que subam e que freiem nas íngremes descidas. Normalmente essas condições não são comuns nos países de origem dos projetos de veículos das montadoras aqui instaladas.

Daqui elaboramos o ponto central deste texto, que aponta para o tópico da necessidade de adaptação dos veículos às condições locais. Disso resulta a importância do olhar da engenheira brasileira e do engenheiro brasileiro que, estando habituado à tais condições, pode traduzir estas demandas para que as matrizes possam melhor trabalhar os produtos, ou mesmo para que certos produtos sejam total ou parcialmente desenvolvidos no Brasil.

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